23 de abr. de 2011

Momento inacabado

O livro sempre ficou intacto naquela prateleira suja de poeira interminável. Até que Otávio mereceu a percepção daquelas folhas amareladas envoltas numa capa marrom e dura. Sem título, a obra parecia ter a idade de, mais ou menos, oitocentas folhas. Grande, protegido. Imponente. Sem título. Eis que o livro que ficou intacto naquela prateleira suja de poeira interminável por séculos, eu diria, pode ser desvendado. É melhor dizer lido. Otávio sentou-se rapidamente no chão, numa avidez jamais vista em seu comportamento vil e perecivelmente artificial. Era um livro. Apenas um livro. Não um carro ou qualquer menina bonita que merecesse a atenção estúpida de Otávio. Então, sem muito o que pensar, depositou o livro no chão, do mesmo jeito em que estava, sentado. Com suas mãos tolas, tirou a poeira interminável e ainda na esperança de encontrar um título, olhava atentamente à capa. Surpreso ao não encontrar o título que ele mesmo dera em sua pobre e assustadora consciência, Otávio caminhou até a prateleira igualmente suja e procurou algo. Pensei, poderia ser o título? Depois de me deliciar com meus próprios julgamentos sem propósito, pensei novamente. O rapaz é mais poeta do que imaginava. Encontrou algo na prateleira, uma caneta. O que há muito, eu mesmo não lembrava ter deixado ali. Engraçado. Ela não estava possuída pela poeira do tempo. Parecia intacta também, mas de modo algum suja ou marcada seja lá por que maldita mão. Otávio então caminhou novamente até onde tinha deixado o livro, e como que num ritual pôs a caneta sobre ele. Visionariamente impressionado, entendeu que a caneta poderia ter preenchido aquele espaço misterioso e imaculado até o momento por simples e possíveis palavras.
Trecho incidental de
A Tragédia de Hamlet
Príncipe da Dinamarca

Peça em cinco atos


Tradução de Péricles Eugênio da Silva Ramos

3ª edição revista - 1976

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