25 de jul. de 2016

Carioca de Janeiro

Enquanto o sol brilhar
uma praia
Enquanto o asfalto queima
um par de pés descalços
Enquanto a dor durar
uma bala
Perdida a quem quiser um amor
duzentos contos.

Pra toda vez um samba
a tocar um sorriso
Pra todo fim de tarde
o aplauso
O horizonte pra se amar
paraíso
Pra toda confusão
uma favela e um causo.

No trem que corta o subúrbio
Suor, calor e água a um e cinquenta
Na avenida que abrasiléira
engarrafado por duas horas
Na voz que grita sozinha
pode ser praça, e Saens Pena
No abrigo que alimenta e suporta
uma rua a chamar de nossa

Se num balanço de quadril
na marquise é puta
Se num abraço de afeto
no viado é porrada
Se nunca antes na vida
é bróder de estrada
Se numa cidade falida
é exclusiva, única.

Se é carioca,
o lado importa a poucos
O iPhone de uns
É sempre o nada de outros.

13 de jul. de 2016

Nu

Despir-se é lento
Como encostar a navalha morna
Como abrir os olhos
Beber água gelada
Caminhar na areia molhada
É distinguir entre uma coisa e outra
Uma temperatura nova
Uma textura
É uma volta de relógio
O ponteiro não importa.

6 de jul. de 2016

Desesperança torcida

Hoje, ela não me reconheceu. Sempre que passava pela rua de Dona Gê ela me acenava de forma vivaz. Jota, seu neto, foi amigo de infância, daqueles que disputavam a bola "dente-de-leite" no campinho rala coco da rua de baixo. Sempre muito entusiasmada, Dona Gê parava em algumas ruas do bairro e se punha a conversar nos portões dos vizinhos os assuntos mais diversos. Na maior parte do tempo o tema era a vida de alguém. O carro novo, casamentos, brigas, o que mais pudesse ser alvo de seus comentários. Quando conheci Dona Gê, ela já tinha cabelos brancos. Tantos, que não havia tinta que desse jeito. Depois de 30 anos passando por sua casa, quase todas as noites, tornou-se hábito o aceno, um "Como é que vão as coisas?", um "Seguem muito bem, obrigado!" e às vezes apenas o meio sorriso de ambos junto do aceno. A cada ano acompanhei Dona Gê no quintal de sua casa. Quase sempre o estava lavando ou varrendo. Até que em um belo dia a vi sentada. Vê-la sentada tornou-se mais comum. O aceno nunca faltava. O "olá, vizinho" nunca lhe faltava. Depois ela passou a esticar-se na cadeira, na tentativa que eu passasse, mas não fingisse não vê-la. Eu sempre a notei, sempre. O pescoço curtinho naquele corpo de estatura muito baixa. Ela nunca deve ter passado dos 1,60. Mas hoje, Dona Gê, num esforço sobre humano, a julgar pela maneira com que franziu sua testa marcada pelo tempo, não me viu. Talvez não tenha me notado. Ainda há pouco ela não dizia mais nada. Apenas acenava. Seu sorriso se apagou no tempo. Mas o aceno... aquele aceno hoje fez falta. Dona Gê não me reconheceu. O fim de dia tornou-se vazio. Essa é a vida. Um punhado de efemeridade, coisas que fomos... esquecidas, por aí...