25 de abr. de 2011

Musicando

Na minha época de criança, até mesmo de adolecente, era comum o passa-tempo chamado "caderno de perguntas". Funcionava como um grande questionário para os amigos mais chegados. Alguém se dava ao trabalho de escrever em cada uma das folhas do caderno uma pergunta, na primeira linha, e nas linhas subsequentes viriam as respostas de seus respectivos participantes. É mais ou menos como o quizz game do Facebook: "Você acha que fulano sairia de casa de pijama? Confira a resposta de beltrano clicando aqui."

Confesso que a ideia do caderno era melhor. A primeira pergunta costumava ser "Qual é o seu nome?" ou ainda a variável imperativa "Nome e idade.", mas a que eu sempre achei intrigante foi "Quem é você?". Imagine que o sujeito se prestava a falar sobre si mesmo, sem vergonha, sem medo de errar. Naturalmente, não respondíamos às perguntas sob o olhar vigilante da psicanálise, nem mesmo nos daríamos conta de compreender nossas respostas de maneira profunda, e ainda bem. Mas uma pergunta em questão me motivou a escrever este texto: "Que tipo de música você gosta?"

Mais do que aos ouvidos, música nos toca a alma. Atinge lugares desconhecidos, territórios emocionais ainda não revelados, tudo porque cada acorde, cada nota em conjunto vibra em sintonia conosco. Ocorre que atualmente a música tem sido questionada. Os tempos são outros. São grupos coloridos, emos, rock-fast-food, funk-presepada, sertanejo de fábrica, e muitas outras porcarias. Mas, em um mundo politicamente correto, no qual pretos são afro-decendentes, deficientes agora são portadores de necessidades especiais, fica difícil de saber qual é seu tipo de música, ou então você poderá ser visto com olhos de preconceito.

Música hoje, e talvez graças ao avanço tecnológico, não possui mais bandeira, nem pátria. Segundos depois de seu lançamento já se espalhou pelo globo como epidemia, com salvas excessões. Eu não me importo de gostar de Panic! At The Disco hoje, porque no momento em que escuto Nine In The Afternoon, me sinto como se caminhasse pelo parque no fim de semana. Não me incomodo de dizer que Luan Santana é ruim e que pra mim Ivete Sangalo é apenas carisma. Cada um está aí para cumprir um papel, que acaba sendo individualizado pelo nosso ponto-de-vista, pelo gosto.

Em tempos complexos, temos de ser simples. Nada de nos relativizar tanto. Goste apenas de seu momento, e a música será a que melhor lhe convier. A pós-modernidade nos deu a sabedoria do trânsito livre, no entanto, não é crime gostar de uma coisa e não gostar de outra. Seja você. Se pudesse brincar de "caderno de perguntas" novamente, acrescentaria: o que te faz ser você?

23 de abr. de 2011

Momento inacabado

O livro sempre ficou intacto naquela prateleira suja de poeira interminável. Até que Otávio mereceu a percepção daquelas folhas amareladas envoltas numa capa marrom e dura. Sem título, a obra parecia ter a idade de, mais ou menos, oitocentas folhas. Grande, protegido. Imponente. Sem título. Eis que o livro que ficou intacto naquela prateleira suja de poeira interminável por séculos, eu diria, pode ser desvendado. É melhor dizer lido. Otávio sentou-se rapidamente no chão, numa avidez jamais vista em seu comportamento vil e perecivelmente artificial. Era um livro. Apenas um livro. Não um carro ou qualquer menina bonita que merecesse a atenção estúpida de Otávio. Então, sem muito o que pensar, depositou o livro no chão, do mesmo jeito em que estava, sentado. Com suas mãos tolas, tirou a poeira interminável e ainda na esperança de encontrar um título, olhava atentamente à capa. Surpreso ao não encontrar o título que ele mesmo dera em sua pobre e assustadora consciência, Otávio caminhou até a prateleira igualmente suja e procurou algo. Pensei, poderia ser o título? Depois de me deliciar com meus próprios julgamentos sem propósito, pensei novamente. O rapaz é mais poeta do que imaginava. Encontrou algo na prateleira, uma caneta. O que há muito, eu mesmo não lembrava ter deixado ali. Engraçado. Ela não estava possuída pela poeira do tempo. Parecia intacta também, mas de modo algum suja ou marcada seja lá por que maldita mão. Otávio então caminhou novamente até onde tinha deixado o livro, e como que num ritual pôs a caneta sobre ele. Visionariamente impressionado, entendeu que a caneta poderia ter preenchido aquele espaço misterioso e imaculado até o momento por simples e possíveis palavras.
Trecho incidental de
A Tragédia de Hamlet
Príncipe da Dinamarca

Peça em cinco atos


Tradução de Péricles Eugênio da Silva Ramos

3ª edição revista - 1976

22 de abr. de 2011

Rir pra não chorar

Lembrei hoje que, certa vez no trabalho, tivemos de reservar um hotel para uma reunião. Nesta ocasião compareceriam 30 pessoas, logo, precisávamos avaliar quais eram nossas opções de quarto para a estada da equipe. Fiquei responsável por fazer este contato e descobrir os preços, etc.

Liguei pra empresa responsável pelo hotel. Após a introdução sobre quantas pessoas e quantos dias, perguntei dos quartos:

- Senhor, temos quartos simples no valor de 90 reais a diária com possibilidade de individual, casal, duplos e triplos e quartos standards no valor de 130 reais com possibilidade de individual, casal, duplos e triplos.

- Entendi... Qual é a diferença entre o simples e o standard, por favor?

- É de 40 reais, senhor.

Aqui, neste exato ponto, eu parei. Respirei fundo e pensei.
"Minha nossa senhora... É uma piada?"
Então pra não chorar eu ri.

- Não, eu quis saber qual é o diferencial de um para o outro, o que um tem que o outro não tem?

- Ah, sim. Praticamente nenhuma diferença.

- Como assim?!

Realmente eu já estava pensando em, sei lá, me matar, mas como não ia adiantar mesmo...

- É, eles possuem as mesmas coisas.

- Mas então, o que difere?

- O andar. O simples é no térreo e o standard é no segundo piso.

É, camarada. Tem gente que paga 40 pratas a mais pra ficar por cima da carne-seca nem que seja nas férias.

21 de abr. de 2011

My Moonshine

Quando disse a Gabriela que adorava caminhar pelas ruas à noite, ela me repreendeu. Disse que a violência e a criminalidade na cidade do Rio de Janeiro estão exageradas, que eu deveria ter mais cuidado. Ela não sabia o que estava dizendo.

Imaginem que se ela pudesse estar em meu lugar uma única vez, veria tudo diferente. Luzes multicoloridas, carros cruzando o espaço formando correntes de ar. Ora frio, ora quente. Suor e a incrível sensação de liberdade. Às vezes, só as batidas no meu peito e os filmes em minha mente. Entre uma música e outra uma alma perdida. Sem perceber os ignoro totalmente. É um momento meu. Carros e pessoas não cabem, escapam, fogem... Pensando bem, eu não ligo. E cruzo ruas, avenidas, aguardo os sinais e continuo caminhando. Às vezes sigo minha sombra para ver no que vai dar e por vezes descobri lugares lindos graças a ela.

Tênis, pedras, rachaduras no concreto, meio-fio, asfalto, areia. Para cada terreno uma pegada. Para cada visão, uma vaga lembrança. Um cantarolar meio desajeitado, um suspiro, e o céu me guarda. A lua então, ah! A lua... Quando esquece a timidez me faz persegui-la por tantas estradas. Às vezes eu simplesmente esqueço quem sou. Busco um pedacinho de vazio, e, encolhido, fico a espreita do que quer que apareça. Muitas vezes sou eu. Então não tenho escolha. Continuo caminhando. Me perseguindo.

A parte boa é que todos os lugares, por onde quer que ande, todos me levarão para um único lugar: minha casa. Quando na praia, adentro o mar e antes que chegue ao fundo, estou deitado em minha cama. Quando nas montanhas, deito na grama verde, ainda úmida da madrugada e termino fechando o chuveiro. Não sei o que fazer com essas imagens. As guardo por hora e meia, por saber que em breve vão descolorir, mas enquanto isso não acontece dou meu jeito de conviver com elas. Passeio sozinho pela noite. Sinto minha própria pulsação. Descubro vidas antes inexistentes.

Quando tiver coragem, pedirei para Gabriela caminhar comigo. Aos poucos, ela vai experimentar a sensação. Eu poderei desocupar aquele cantinho... Não vou me importar mais com meu destino, porque para onde for, minha sombra me guiará... Um futuro, um único lugar. E finalmente as imagens terão desaparecido. Gabi poderá me ver ali, bem ali ao lado do por-do-sol esperando a lua chegar. Esperando por você. Em minha casa, nós dois, construiremos outro mundo. Sem carros, sem promessas vãs... Nenhum tempo, nenhuma vontade de ir embora.

Se Gabriela soubesse como é caminhar entre mundos e sonhos, dormiria ao meu lado so pra aprender que andar pela madrugada não é perigoso, requer vontade, coragem e amor pela vida.


We got older and I should've known
(Do you feel alive?)
That I'd feel colder when I walk alone
(Oh, but you'll survive)
So I may as well ditch my dismay
(Bombs away, bombs away)

Circle me and the needle moves gracefully
Back and forth
If my heart was a compass you'd be north
Risk it all 'cause I'll catch you if you fall
Wherever you go
If my heart was a house you'd be home


If My Heart Was A House
Owl City

20 de abr. de 2011

"- Essa vida vale a pena, Anne."

E se a vida fosse diferente?
Ela pode ser...


"- É, e por quê?"
"- Porque sim. As coisas são sempre o que parecem, só que com algo a mais, o que nunca entendemos. E sabe, podemos ser felizes, mas sempre fodemos com tudo sem nos dar conta. Tá bom, foder foi uma palavra desnecessária, sei disso. Mas é que é tão certo como as coisas acontecem, né? Você passa um tempão se dedicando a alguém, vive aquela vida como se fosse sua, protege, cuida. Faz planos. Lembra sobre quantas vezes falamos de viajarmo nós quatro juntos? É sim, então... Acho que a maior parte dos meus relacionamentos não deu certo por isso. Sempre cuidei mais que fui cuidado. Só que hoje, eu encontrei quem me amasse, quem quer cuidar de mim, se importa. É um amor maduro e infantil ao mesmo tempo, daqueles de filme, que te deixa seguro e você o faz sentir também, porque amor é troca, não tem jeito. E é por isso que essa vida vale a pena, Anne e você sabe por quê? Porque eu tenho certeza que não sinto mais nada pelo passado. Posso conviver com ele, aprendi com ele. Isso não é justiça? Você sabe sobre como eu pensei sobre tudo o que aconteceu, que foi muito difícil pra mim, porque sou dedicado, porque é como eu sou. Daí já imaginou encontrar com esse alguém na rua? Eu nunca tive fantasmas, não quero passar por isso. Conversei tanto com esse novo amor. Lhe disse tudo o que eu gostaria que dissessem pra mim, e o melhor, de coração aberto sempre, nada de ficar na defensiva. Ele me mostrou o quanto eu posso ser feliz novamente. Ele também tem seus problemas e me contou pelo que estava passando. Eu lhe disse que não importava como, ele podia contar comigo. Fiz bem? É, eu também acho. Porque a vida é assim, e se não fizermos algo, passa rápido. Eu queria agora enfrentar o mundo inteiro. O fantasma se foi, e tudo por uma conversa. A vida é assim mesmo, não é? Um dia é linda e maravilhosa, no outro ela é tão 'vida' e você descobre que ela vale a pena."

Ps. Texto-resposta a uma postagem que encontrei por aí.

19 de abr. de 2011

14 de abr. de 2011

Dia de Abril

Antes de dormir adoro revisitar meus pensamentos, meu dia. São paisagens inteiras viajando entre as paredes do meu quarto. Meus livros, meus carrinhos, minhas moedas, canetas, roupas espalhadas pelo chão, mochila, cristais, revistas, todos presenciam minha jornada rumo ao desconhecido, porque uma coisa é vivenciar o dia, é pensar nele, outra coisa é revisitá-lo. Quando retornamos à cena o vermelho é mais intenso, nada é o que parece. Existe um movimento especial que nos faz observar cada curva da estrada como sendo o trecho mais importante. O solzinho tímido por entre as nuvens, a água pingada a cair do céu na praia, a brisa fresca manuseada pelos carros passando... Riscos de tinta pintados à mão pelos pássaros, e o verde intenso das matas que ainda existem no Rio. As sombras das árvores subitamente me trazem a sensação do frio. Caindo meu pé pelo cantinho da cama, sinto as ondas do mar invadirem meu quarto. Minha cama meu barco. As roupas do chão flutuam e quase querem atravessar as paredes para além de mim. O vento derruba minhas anotações dispostas sobre a mesa do computador. Minhas paredes tingem-se das cores mais vivas a cada pássaro que surge em meu quarto. A melodia perpassa os ouvidos, penetra a alma, meus livros flutuam e dançam, são pássaros a me acompanhar. Viro para o outro lado da cama e meus carrinhos cortam minhas lembranças passando em velocidade ímpar por onde quer que eu vá. Sinto o tilintar das moedas como uma breve cascata enquanto minha mochila se abre para guardar tudo. A água fresca, a sombra das árvores, meus pássaros, minhas expectativas e tragédias. Meu sol perde o brilho, mas nunca a cor. Meu chão, agora seco, ainda possui as mesmas roupas espalhadas, minhas paredes coloridas mudam a melodia e cada verde intenso torna-se mais uma vez um pedaço de mim. Sento-me na cama. Recolho minhas anotações, remonto minhas paisagens, perco o sono outra vez. Seria impossível revisitar meus pensamentos, porque onde quer que fosse, ao longe, lá estaria você. Se na praia, vinha de dentro do mar, caminhando pela areia abraçado à timidez do sol. Vinha me acenando do carro quando não estava a voar com os pássaros por entre as nuvens de chuva declamando poemas em verdadeira música. Estaria ao meu lado, refletido no vidro do ônibus, sorrindo expectativas para o amanhã. Seria eu mais uma vez além das paredes do meu quarto, que rapidamente ressurgem de longe, bem delicadas, sem pressa para não quebrar a magia. As moedas sobem a mesa, as anotações voltam para seu ninho, meus livros não voam mais, fecham. Minha mochila abriga tudo o que preciso. Volto meu olhar para ela. Ali está marcada pelo dia-a-dia, ali está você, aos pedaços, me fazendo corar. Ali, escrito em frases desajeitadas pelo balanço do meu dia, está tudo o que preciso para lembrar num simples caderno de notas em folhas brancas, vazias, porque trago na memória o que me faz continuar.

Ps. Dedico este texto a alguém muito importante em minha vida.

Monólogo de um eu mesmo

É assim que pseudopoetas como eu começam suas chamadas poesias. Eles tentam e encontram um tema. Mais do que isso, visualizam sua platéia. Depois, empregam apenas um sentimento capaz de despertar aquilo que desejam. Exemplo:

Mas o que somos nós afinal?

Não passamos de marionetes. Não possuímos nada. Assim que chegamos nos tiram o que nos é mais sagrado com um corte frio de navalha. A verve que nos sustenta acalenta de um seio um sonho, fragmento de realidade.
No raso somos marionetes, vivendo histórias repetidas de roteiristas falidos, brigando pelo papel de destaque porque na vida ninguém é de fato o principal.
E neste trocadilho de circunstâncias nada é o que parece, mesmo depois de todo o sentimento em foco.
Vai-se o cenário, chega-se ao fim.
Até que no tempo certo, a personagem é tomada por algo que a sustente. Somos constantemente tomados por diversas coisas, elas nos possuem, alimentam, nos tornam vivos, e quando nos constipam com suas vicissitudes, este acaba sendo o momento da danação. Não é mais a vontade tórrida imposta a uma marionete, a personagem sai de controle e toma as rédeas de seu destino. O maldito autor desta merda que intitula-se vida não alcança mais o lápis nem o papel o recebe como divino mestre supremo da verborragia clássica a que sempre esteve fadado, não. Viver torna-se mais e maior do que respirar, em que surpreender-se é apenas a metade da etapa. Esta massa repleta de plasma ganha finalmente vida e as histórias contadas por uma outra pessoa qualquer ganham seu valor.
E não adianta mais berrar em silêncio pela resposta... sinta apenas o pulsar, o significado, seu signo, seu significante. E sangra. Sangra calado... Jorrando para dentro de todas as várzeas cálidas de tua alma a dor incontestável pela qual vais passar porque é assim que é e sempre será viver.
Correndo, brigando, latindo, nascendo.

(O verbo)

A força de ser real pelo simples prazer de ser um joguete nas mãos de sua mente. O poder de ser pra frente ante ao desfiladeiro infinito da solidão... A mágoa da simples constatação de que ser poeta é macular a própria alma com verdades que nunca serão as suas verdades imbuídas nos sentimentos que nos farão viver, porque é o que queremos ter, ou ser, estar talvez, quem sabe ou saberá. Mediante rimas tortas e libidinais, lágrimas, horas... realidades em planos surreais. Somos todos os fantasmas do agora, porque do amanhã... Eu já não sei mais.

Texto sem sentido.

Tudo o que me fazia sentido tinha acabado de morrer.

Sempre gostei de passar tardes caminhando no parque. A alegria das crianças, os cães correndo em liberdade, brincando, latindo, a grama verde e o sol refletido no lago, isto costumava me deixar muito feliz. O vazio que sentia por estar longe era preenchido com momentos de solidão. Prometi a mim mesmo... Pra quê falar sobre isso? Infelizmente, não sei o porquê.

Caminha observando cada grão de areia, cada pedra. Os esquilos brincavam nas árvores, disputando por comida e um pouco de atenção. Aos poucos, alguns me seguiam. Pássaros também. Tudo era tão ávido por vida que eu não me notava entre eles. E o tempo passava. As pernas doíam, meus pés pareciam não mais caber nos sapatos. O vento então ficava mais e mais frio, cortante. As roupas não eram suficientes. Minha vontade era a de parar. Parei. Fui até a uma árvore e me sentei sem me importar com insetos nas folhas caídas ao chão, se minha calça iria sujar, o que as mentes ao redor pensariam sobre mim, não pensei em nada. Somente o vazio. Chorei. Cada lágrima salgada e morna escorria pela minha face para de súbito gelar. Meu peito doía e ofegante eu não sabia mais onde estava. Meus dias tinham sido assim desde que entendi o que era viver. Dias vazios, marginais. Eu comia e o estômago cheio ainda pedia mais. Dormia, mas ao acordar sabia que sentiria uma vontade ainda maior de deitar e dormir por todo o sempre. Mas eu não poderia cumprir meu desejo, não hoje.

As luzes dos carros roubavam minha atenção, estava lúcido mais uma vez. Mãos nos bolsos, respiração quente, olhos inchados, rosto frio, colando. Atravessava as ruas pedindo para um carro me tomar de assalto os minutos seguintes de angústia. Voltar pra um lugar que não era meu, com gente que não era minha, este era o meu destino. Mas por quê? Por que eu me submeti a tamanha provação para constatar o que sem qualquer dificuldade eu poderia.

Lírios

Tudo o que se podia ver naquele jardim, eram os lírios brancos. Por mais que se plantassem outras sementes, só vingavam os lírios. Vovó sempre disse que a terra era boa, mas nunca soube explicar por que só nasciam lírios. Como de costume, sentávamos sempre ao sopé de uma jaboticabeira para ouvir as histórias de Tia Maria ao sabor do vento fresco que corria livre naqueles campos. Era tão bom. Suas histórias sempre nos falavam da vida dos animais e dos espíritos que protegiam a natureza. Ela jurava de pés juntos que, várias vezes, já vira um duende brincalhão perto das bananeiras. E então, sentados, todos, eu, meus primos e meus amigos sob a sombra daquela jaboticabeira tão frondosa, nos deliciávamos com a voz baixa e rouca daquela senhora. Mas, por mais que eu desviasse o olhar, ou tentasse prestar muita atenção às histórias, os lírios brancos me conquistavam os olhos. Eu os olhava penetrantemente e o tempo passava rápido. As nuvens fugiam das montanhas, o sol se assustava e ia embora de mansinho, junto com ele o dia e a lua crescia redonda, brilhante, para proteger o sono dos passarinhos. Lembro da minha pele fria. Vovó chamava da varanda – Vem colocar um casaco, menino, ou vai ficar resfriado! Eu? Obedecia. Saia correndo com os pés descalços, sentia cada gota de orvalho molhando os meus pés naquela grama alta e já sabia – Cuidado pra não cair, menino! – mas não adiantava. O coração apressava o compasso, o cheiro de grama molhada tomava conta de mim e logo estava na varanda. Como sempre, Vovó dizia que eu tinha de tomar banho se quisesse sair para brincar com a molecada. Lá ia eu. Entrava no chuveiro, doido para sair. Olhava pela janelinha e lá estavam eles, os lírios. Lindos. Cada um maior que o outro. De noite, ficavam ainda mais belos, pareciam Ter sido pintados de prata pela lua. Perdia um tempão com o chuveiro ligado. Tia Maria então dizia – Sai logo desse banheiro, menino! – Aí, eu tomava meu banho às pressas. Chegava a queimar aquela água geladinha nas minhas costas. O sabonete cheirava doce, lembro bem. Rapidamente eu me aprontava. Sabia o que estava há minha espera. Eram bolinhos de chuva! E nem precisava chover. Bastava eu estar lá. Que delícia. Então eu ia pra rede da varanda e comia um monte tomando chocolate. Olhava ao meu redor e tudo era harmonioso. As árvores do pomar, os campos, os muros fortes da casa da Vovó, os amigos e familiares... por fim, o jardim. Majestoso. Eu tinha tanto apreço por aquele lugar, que numa tarde quente, eu pedi pra Tia Maria falar com o duende dela pra não me acordar que eu ia tirar um belo cochilo no meio dos lírios. Foi o melhor cochilo da minha vida. Que perfume gostoso. Aquelas flores me recebiam tão bem. Eu não tinha vontade de acordar. Até que Vovó ia lá perto e chamava – Acorda, menino, o café tá na mesa. Fiz bolinho de chuva que você gosta, anda. Ela sabia me conquistar. E bem. Eu comia muito, mas Vovó fazia tanta coisa que parecia que eu não tinha comido nada. Ela reclamava, falava pra eu comer pra ficar forte e crescer. Até que chegavam os momentos de noite eterna. A casa ficava escura. Tia Maria esquecia das lâmpadas e só ascendia velas pela casa. Daí é que eu me dava conta que Vovó nunca mais tirou aquele vestido . Que Tia Maria sorria muito pouco. Meus amigos? Sumiam de repente... um moço estranho vestia elas de branco, cantava musiquinha e colocava elas pra dormir. Eu ficava com muito medo e corria pra ver os meus lírios brancos. Mas quando chegava lá, eles estavam todos mortos, murchos, queimados, feios. Eu chorava bastante, até que o dia resolvesse nascer. E eu sabia que não precisava esperar muito. Vovó ouvia meu choro. Levantava, colocava o vestido de sempre, me dava carinho e dizia assim:

- Não Chora. Vai ficar tudo bem.

E lá estava eu. Sentado ao sopé daquela jaboticabeira, sentindo o vento fresco da manhã, olhando pros lírios daquele jardim com medo do futuro. Com medo de mim.

Clara por ter sido.

Quando ela falava nossos olhos brilhavam como estrelas e da mesma forma hoje, mas o brilho já não é mais o brilho que fora um dia, mesmo que os olhos ainda cintilem. Sua voz era firme, sensual, é claro que de uma forma estranha porque ao passo que ela nos seduzia com seus loiros e longos cabelos, sua pele macia e seios fartos me faziam acalentar o pensamento. E logo o sinal cortava todo e qualquer devaneio com seu grito de retorno à realidade.

- Crianças, não esqueçam da tarefa de casa. - Dizia a professora Clara, e como era clara. Dicção perfeita, andar calmo e contido dentro de seus sapatos de salto ligeiramente alto, que faziam suas pernas, por debaixo da saia, ficarem ainda mais desenhadas. E como era clara a distância entre nossas dimensões. Notava sua boa vontade ao nos desejar um excelente dia tocando nossos cabelos, e eu invejava cada segundo dos cabelos que não eram meus. E meus assobios de verdade não chegavam até ela, porque minha música falava mais à própria solidão que qualquer outra melodia um dia viria a falar.

O caminho para casa era longo, e as pegadas de meu caminho nunca saíram de lá. Faziam com que me lembrasse de cada passo e cada suplício rumo ao lar que nada me fazia querer estar lá. Paredes sombrias, pouca luz... Amarela. De tão amarela o meu medo se escondia nas frestas das portas entre-abertas. E os olhos, tão grandes que me fitavam à distância por toda parte. A fantasia se revelava ainda mais obscura na medida em que uma senhora cheia de amor vinha ao portão bem branco de grades enormes me receber com palavras de carinho.

- Até que enfim, meu filho. Seu pai já ia pedir para o motorista te buscar.

Meu silêncio perfeito acompanhado de um sorriso imaculado enfrentava agora os corredores intermináveis que significavam o labirinto que existia dentro de mim... E de repente, Clara. Lá estava ela. Abria a porta de meu quarto, corria, pulava na cama e tão rapidamente quanto saltava, sacava de minha mochila o caderno. Seu visto, sim, uma simples rubrica e os números que indicavam as páginas de um livro escritas pela mais bela caligrafia que eu já vira em vida. De forma surpreendente eu a desenhava em minha imagem e semelhança, altura, timidez, Clara era agora uma fantasia real, comparava-se a mim e de tão perto me assustava com o vento nas cortinas alvas que ventavam às janelas de meu quarto. Sentia sua respiração e entonação firmes quando fechava os olhos e via suas mãos doces afarem meus cabelos. E cada segundo interminável me alimentava a alma. Pegava o livro, fazia a tarefa e o prazer que me enchia os pulmões arrancava deles um suspiro de satisfação. O lanche estava à mesa.

Até que minha fortuna etérea tivesse fim carregada ralo abaixo por uma água cruel e morna. A água escorria e com as gotas eu sentia mãos e dedos duros que percorriam meu corpo e me faziam penar na tentativa de tirarem de dentro de mim qualquer resquício de felicidade que ainda me pintasse a recordação. E a luz de Clara se esvaía, e tudo tornava-se mais uma vez escuro. A empregada me ajudava a vestir o pijama para que tão logo eu fosse dirigido ao calabouço da liberdade, sim. Preso e livre das afrontas dos fantasmas que eu já não queria mais ver. Seus gemidos eram ouvidos a procurarem por minha presença, mas eu era mais veloz e só os escutava quando me espiavam da porta, lamentando terem chegado tarde. E então, as paredes sumiam e tudo mais uma vez se tornava claro, e quanto menos esperava, o sinal me rasgava o em susto o coração, e Clara, minha professora de português dizia sem pausa ou intenção...

- Parabéns, sua redação ficou linda.

Se ela soubesse o quão linda ficaram as linhas de minha escrita depois de sua passagem, ela jamais teria cometido tal crime sem antes se julgar culpada por ferir o futuro de um homem cujas imagens... já não se colorem mais.

10 de abr. de 2011

O diálogo que nunca houve

- Fantasmas são memórias do passado nos perturbando por conta de assuntos inacabados. São frases que não foram ditas, tapas que nunca foram dados, feridas jamais cicatrizadas, sentimentos que não se findam.

- Não tenho fantasmas, muito menos memórias. Possuo vagas lembranças daquilo que tive de bom, e não me esforço pra saber o que foram justamente pra deixar a vida me manter jovem, surpreso pelo que ainda há de vir.

- Minhas frases foram ditas em alto e bom tom. Meus tapas foram suaves, mas existiram. As feridas nunca guardei e meus sentimentos renascem comigo a cada manhã. Não ouço fantasmas, entro nas vidas sem pedir licença, e saio delas sem cartas de despedida, porque é triste ser uma memória. Vou preferir sempre ser uma mera... E vaga... Lembrança... Vejo o sol pela minha janela.

- Não é verão.

- Mas a vida é quente e pulsa no amanhã.

8 de abr. de 2011

Até a página 20...

Seres humanos são complicados por natureza. Aquilo que lhes move, muitas vezes, é um absoluto mistério. O que a uns parece a mais profunda estupidez, a outros, vai parecer a maior das descobertas. Assim somos nós, um misto de coisas que acreditamos ser com outro misto de coisas que notam em nós e que nem sequer percebemos. Ser gente é complicado.

No dia a dia é ainda mais complicado. Imagine você que se nenhum homem é uma ilha, dependemos das relações interpessoais para realizarmos coisas. Então, nos apoiamos no que vemos de melhor nos outros, crédulos de que a ordem deve imperar por sobre o caos de maneira plena e satisfatória. Entretanto, ser gente implica em algum momento deixar de ser porque somos dinâmicos, inconstantes e cheios de defeitos. Nos baseamos nas virtudes para compreender o outro, e as usamos como desculpas fáceis aos nossos defeitos para justificar a repressão ao comportamento do outro, exercendo também os nossos defeitos. Definitivamente a tarefa não é nada fácil. Conviver em harmonia com a desavença, diversidade e desordem exige muito mais sacrifícios pessoais que conviver consigo mesmo, porque conviver consigo mesmo nos possibilita mentir sem dever satisfação.

Conheço pessoas que me fariam "vestir a camisa" da humanidade. Conheço outras tantas que me fariam rasgar qualquer tecido. Há que se buscar a convivência com alteridade e paciência para obtermos tolerância e respeito. A loucura da vida está em não tentar interpretar o mundo do outro com todas as palavras. Se nossas vidas fossem livros, de verdade e sem figurações, eu não gostaria de ser excelente até a página 20.

4 de abr. de 2011

A vida nossa de cada dia

Recentemente o Brasil perdeu um de seus políticos mais notáveis, mas não por seus feitos políticos, falo de José de Alencar.

A morte nos causa certa comoção, é verdade, e no Brasil, basta morrer na política para que o passado tenebroso seja aviltado por uma onda de perdão interminável e de forma intermitente, graças a Deus, porque assim como os pecados são esquecidos com o tempo, o sujeito também. O problema é que tal figura para sempre será lembrada pelo seu gesto mais puritano, e não por tudo aquilo que lhe formara o caráter.

José de Alencar, um homem forte, industriário de personalidade ímpar ganhou notoriedade quando assumiu a tarefa de vice-presidente de Luiz Inácio Lula da Silva provando-se fiel escudeiro durante seus dois mandatos, mesmo tendo sido incapaz de se manifestar sobre o escândalo do mensalão, momento em que se resguardara de um silêncio impecável. Noutra ocasião, levou seu conglomerado têxtil para a China, a despeito do debate sobre o protecionismo do mercado chinês ou sua citação na CPI dos Correios. Mas o que mais me adimirou em José de Alencar foi sua coragem. Coragem para lutar pela vida. Coragem para continuar. Coragem para fugir dos escândalos que o assombravam, coragem para calar quando o povo brasileiro precisava de respostas e coragem para dizer à Rosemary de Morais, suposta filha, que lhe movia um processo de investigação de paternidade, que se negava a realizar o teste de DNA porque quando jovem frequentou muitos prostíbulos e que certamente sua mãe era uma daqueles prostitutas com quem teve relações sexuais. Será que isso desmerece José de Alencar? Talvez sim, talvez não, pois afinal, só nos comovemos com sua batalha porque a midia nos fazia questão de noticiar, vice-presidente acometido de câncer abdominal é notícia enquanto milhares de anônimos nas filas do INCA agonizam suas vidas dignas em longas esperas pela esperança que o dinheiro não foi capaz de comprar.

É, José de Alencar, vá em paz e que Deus o tenha no Santo Reino da Glória, ou que o Diabo lhe carregue, quem vai saber? Bem, eu que não vou lhe julgar, mas canonizar meu caro, não conte com isso.