10 de fev. de 2012

A cadeira e Rosana


Pos seu melhor sapato. Era preto. Um preto surrado, desgastado pelo uso. Tinha um saltinho fino, porém baixo com uma fivela dourada como adorno na parte da frente, antes de chegar ao bico fino... Mas não era de couro. Nas pernas rijas uma meia-calça impecável e sem um fio puxado sequer. Vestia uma saia, preta e comportada, até a altura dos joelhos. Ela estava um pouco arrojada graças ao quadril largo e a um cinto com detalhes prateados.

Rosana, uma mulher de meia idade, arriscaria uns 50 anos, usava também uma camisa vinho cujas mangas curtas já não suportavam mais seus fortes braços, o que impossibilitava que o fecho nas mangas, botõezinhos em detalhe, não fechassem. Aliás, um mero detalhe realmente para uma camisa de corte bom, que não denotava o uso de soutienes, nem sensualizava o busto de Rosana. Na face, muita maquiagem, mas como as senhoras de antigamente mesmo. Blush, lápis para reforçar as sobrancelhas, batom vermelho escuro, discreto e pouquíssimo lápis nos olhos. Seus cabelos eram curtos e crespos. Castanhos. Estavam escovados como se fazia antigamente, de tão armado que estava o penteado dando-lhe um ar de sobriedade ao rosto redondo e maduro. Ela usava brincos de pérolas, assim como um grande colar de pérolas. A cada dez das bolinhas branquinhas, vinha uma de metal, vermelha. Não era de muito bom gosto e obviamente não eram verdadeiras as pérolas, nem sei se o relógio pequeno e dourado que usava no punho esquerdo era um legítimo qualquer coisa. Acredito que não.

Rosana era simples, mas estava cafonamente vestida como uma mulher de sua idade se vestiria há cerca de 10 ou 20 anos. Talvez seu guarda-roupas tenha parado no tempo. Talvez sua percepção de moda não tenha se modificado. No mundo de Rosana, talvez não existisse espaço para outro formato de corpo, nem de pentiado. Maquiagem? Quem precisa de sofisticação? O básico faz bem seu trabalho. E por horas esta mesma senhora olhou para o relógio, estava ansiosa esperando. Repartições públicas são realmente incapazes de atender nos horários pré-agendados. Rosana, então, sacou de sua bolsa um tanto grande, de couro preto e detalhes prateados, uma revista e uma caixinha marrom de onde tirou seus óculos. A armação era transparente, as lentes um pouco grossas, certamente era para aproximar e ampliar as coisas vistas de certa distância, pois foi assim que cruzou as pernas, repousou a bolsa sobre a saia na, altura dos joelhos, e foleou a revista com atenção e distância. Atenção esta que volta e meia era dividia com o painel eletrônico que anunciava as próximas senhas a serem chamadas para o atendimento. Ela também tinha uma.

O telefone tocou por duas vezes, e não era um telefone simples, mas também não era o mais novo lançamento em touch screen. Mas Rosana o manuseava com certa habilidade incompatível para seu jeitinho anos 80 e sua provável idade. Impaciente, sacudia a perna, olhava para o lado, descansava os olhos em pensamentos perdidos e por segundos se desprendia da personagem. Perdia completamente a compostura ao libertar os calcanhares dos sapatos de bico fino certamente apertados ao julgar pelos pés nitidamente rechonchudos. Sentava de pernas abertas sem se preocupar se sua bolsa realmente impediria qualquer visão de sua intimidade pelos homens que se sentavam do outro da sala de espera, em outras cadeiras. Foi então que o número de Rosana apareceu na tela. Acho que percebi mesmo antes dela que seu número estava na  lá. Quando se deu conta, não escondeu a surpresa ao arregalar os olhos. Guardou a revista na bolsa com velocidade. Tirou os óculos. Calçou os sapatos. Guardou os óculos na bolsa. Levantou-se, ajeitou o cabelo de leve. Umideceu os lábios e caminhou com postura e firmeza até o guichê número três, responsável por atender pensionistas.

Certamente era viúva. Seu falecido marido um militar. Ela, mãe de dois filhos apenas, já crescidos e encaminhados. Deve morar no subúrbio, mas quis parecer viúva de um comandante e vestiu-se para tal, pois era atendida em Copacabana, zona sul da cidade Maravilhosa. Percorreu aproximadamente 60 quilômetros de asfalto num ônibus qualquer. Estava cansada. Mas sua pensão era importante. A praia também. As outras mulheres mais ainda, e Rosana... Ah, Rosana! Estava mais uma vez com a pensão renovada e a conta bancária com dinheiro para continuar tocando sua vida.

A cadeira em que ela estava sentada fez toda a questão de me apresentar Rosana e conter consigo uma história mais, e outra, e mais outra, outra mais... Os objetos estão cheios delas, mas nós não percebemos... São todos livros cujas páginas e linguagem o homem ainda não domina. Mas garanto, as histórias estão lá.

Agora seria a vez de Lúcia. Ela chegou mancando, cabelos curtos, pintados, e pela forma com que se sentou, diria que tem uns 40 anos. A cadeira me disse mais... Mas esta, já é outra história.

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