14 de jul. de 2011

Cotidiano

Era manhã no Departamento de Polícia Federal quando uma senhora, no auge de seus 90 e todos de idade adentrou o recinto ajudada por uma mulher que parecia ser sua filha.

Silenciosamente a mulher, de meia idade, acomodou a senhora em uma das cadeiras da área de espera do atendimento e lá a senhora permaneceu quieta, muda, absolutamente imóvel. Sua pele já em muito castigada pelo tempo, suas mãos marcadas, suas roupinhas de vovó a faziam lembrar uma imigrante européia. Talvez fosse, pois ali também se realizavam atendimentos para estrangeiros.

Muito cautelosa, a senhora se movimentou finalmente. Virou o pescoço curtinho em direção a sua acompanhante, mas não olhou para ela e sua voz pode ser ouvida pela primeira vez:

- Em toda mi vida io nunca fui tão ofendida. - Dizia a senhorinha miúda com voz baixa e rouca com um sotaque levemente italiano.
- Nunca fiz um mal a ninguém e agora tenho que me apresentar a policía. Mio Senhor, mio Santo Antonio, dai-me coragem! Logo io que nunca matei una barata... A barata aparecia ali no canto da parede e io espantava, dizia "afasta-te baratinha", mas não, isso não conta.

A mulher que a acompanhava a repreendeu:
- Mamãe, já não falamos sobre isso? A senhora esqueceu?

Imediatamente a senhora se calou. Um minuto depois ela retomava o discurso muito desapontada e inconsolável. Desta vez, junto de suas palavras, gestos e mais gestos incontidos:
- Io só quero que fique bem claro que io nunca que fiz nada a ninguém, mia Nostra Senhora... Como é que podem fazer isso comigo que sempre fui tão boazinha... Não mereço isso! Olha como que io estou tremendo... Tenho medo de la policía. Io não fiz nada, estou parlando que no fiz, no fiz!

O aparente desespero daquela senhora provocou na filha um riso contido. Certamente ela não estava sendo acusada de nada. A velinha reclamava para si mesma, inconformada enquanto sua filha ria e olhava ao redor com certo ar de vergonha. Estava claro que se tratava de um daqueles rompantes de velhice, que aos sortudos, um dia há de chegar. Porém, as risadas contidas da filha se transformaram em gargalhadas contagiantes mediante o desespero de sua mãe. Mais e mais pessoas aderiram à grande piada. Em segundos, todos ali riam e não havia nada que pudesse ser feito para que a senhorinha se calasse. Em certo ponto chegava a dar pena. Talvez ela não estivesse entendendo o porquê de estar ali, e nem que os estranhos daquele lugar riam dela, mas em seu mundo, algo terrível estava para acontecer.

Não tardou até que um Agente Federal viesse para atendê-las. A senhora, ao olhar para ele baixou sua cabeça enquanto era erguida de seu lugar com a ajuda da filha e continuou a murmurar seus lamentos. A filha tentava conforta-la, porém era inútil. Ambas cruzaram a porta do atendimento e sumiram de nossas vistas.

Minutos depois, elas retornam. A senhora parecia um pouco mais aliviada, mas ainda decepcionada por ter sido levada à polícia. Então, cutucou a filha:
- Agora vamos embora?
-Sim, mamãe, vamos sim. Viu só? Eu não disse que não demoraria nada?
- Mas também, io disse que era inocente, io disse! Io nunca matei una barata... una formiga!

Enquanto falava, gargalhavam todos na sala, mais uma vez. A senhora repetia toda a história para si mesma durante a cena cômica, quando a filha deu o pior dos desfechos para a minha surpresa. Virou-se ela para todos da sala sinalizando que sua mãe estava louca. Movimentou os lábios sem emitir um som dizendo "ela está caduca, coitada". Os risos aumentaram, mas em mim um enorme silêncio se fez. A imagem daquela senhora pequenina, indefesa da malícia de todos e que estava entendendo pouco o que acontecia ao seu redor, de feições aflitas por pensar que todos ali poderiam vê-la como uma criminosa, cortava meu coração com pesar. Sua filha já cansada das aventuras da mente de sua mãe... Uma delegacia. Estranhos. Deve ser difícil acordar todos os dias e ver o mundo com olhos que só você possui. Sair do cotidiano normal e invetar um mundo só seu... Ou ser jogado dentro dele sem nem mesmo querer, e não ter alguém ao seu lado para partilhar isso ou pelo menos te tratar com respeito.

Eu sei que você nunca matou nem mesmo uma barata. Acalme-se, vai ficar tudo bem.

Nenhum comentário:

Postar um comentário