6 de jul. de 2016

Desesperança torcida

Hoje, ela não me reconheceu. Sempre que passava pela rua de Dona Gê ela me acenava de forma vivaz. Jota, seu neto, foi amigo de infância, daqueles que disputavam a bola "dente-de-leite" no campinho rala coco da rua de baixo. Sempre muito entusiasmada, Dona Gê parava em algumas ruas do bairro e se punha a conversar nos portões dos vizinhos os assuntos mais diversos. Na maior parte do tempo o tema era a vida de alguém. O carro novo, casamentos, brigas, o que mais pudesse ser alvo de seus comentários. Quando conheci Dona Gê, ela já tinha cabelos brancos. Tantos, que não havia tinta que desse jeito. Depois de 30 anos passando por sua casa, quase todas as noites, tornou-se hábito o aceno, um "Como é que vão as coisas?", um "Seguem muito bem, obrigado!" e às vezes apenas o meio sorriso de ambos junto do aceno. A cada ano acompanhei Dona Gê no quintal de sua casa. Quase sempre o estava lavando ou varrendo. Até que em um belo dia a vi sentada. Vê-la sentada tornou-se mais comum. O aceno nunca faltava. O "olá, vizinho" nunca lhe faltava. Depois ela passou a esticar-se na cadeira, na tentativa que eu passasse, mas não fingisse não vê-la. Eu sempre a notei, sempre. O pescoço curtinho naquele corpo de estatura muito baixa. Ela nunca deve ter passado dos 1,60. Mas hoje, Dona Gê, num esforço sobre humano, a julgar pela maneira com que franziu sua testa marcada pelo tempo, não me viu. Talvez não tenha me notado. Ainda há pouco ela não dizia mais nada. Apenas acenava. Seu sorriso se apagou no tempo. Mas o aceno... aquele aceno hoje fez falta. Dona Gê não me reconheceu. O fim de dia tornou-se vazio. Essa é a vida. Um punhado de efemeridade, coisas que fomos... esquecidas, por aí...

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