16 de abr. de 2017

Carta a um desconhecido.

Oi. Meu nome é Bruno F., e apesar de ja ter tido outros nomes, este é um dos que mais me agrada. Tenho 34 anos. Sou ator, poeta, instrutor de idiomas, às vezes servidor público, mas jornalista com certeza, e embora não me sinta tanto, humano também. (Rsrs) Minhas especializações são em cultura e política internacional, mas nem sempre foi assim. O Rio de Janeiro e suas paisagens me motivaram a construir este caminho, sabe. É tudo parte de um quadro. Como daqueles que vislumbro deitado em minha cama olhando pra janela... É bem isso. Eu consegui transpor para o meu quarto elementos inconscientes de minha cidade. Sempre esteve tudo ligado. Desde o contraste das tintas na parede à espada que guardo dos tempos de arte marcial quando fui atleta. Ah, esqueci de mencionar esta parte. Vou tornar as coisas mais lineares.

Imagine que alguém pode acordar e ver, diante de si, do alto de uma daquelas camas de viúvo, cujas medidas não são tão curtas quanto as de solteiro, nem tão grandes que te façam sentir a solidão que um viúvo deve sentir por ter sido arrancado dele um grande amor, uma cama na medida da saudade, a cidade. Na cama, um indivíduo. Este sou eu. Ao abrir os olhos na direção da janela, de duas abas internas de madeira e vidros abertas, com outras duas de ripas de madeira, externas, fechadas, tudo o que se vê é a luz do dia atravessando timidamente as frestas enquanto a parede de tinta azul me observa silenciosamente. De maneira curiosa ela tem dois tons de azul. Uma chuva forte de verão, chuvas sinceras, das que carregadas de pingos grosseiros e rajadas de vento revelam os defeitos em qualquer construção, adentraram meu quarto. Eu senti a natureza e sua delicadeza. Era como um chamado de pertencimento. - Aqui, na cidade maravilhosa o clima é quente, mas dependendo de onde se esteja, ameno. Agradável. Nos tempos de calor eu nunca me sinto confortável, mas nos dias mais frios me conformo. - Essa chuva fez que eu precisasse fazer um pequeno reparo na janela e na parede, mas eu não tinha mais a cor aplicada anteriormente, então usei outro azul na metade inferior da parede. (Rsrs) Não ficou tão ruim, prometo, mas eu tenho desde então uma parede azul em dois tons que são exatamente como a discrepância que existe entre a zona sul de minha cidade e as zonas outras, numa das quais eu resido. Minha casa é bastante confortável, é verdade. Não posso reclamar. Mas em nada ela se assemelha aos apartamentos de mais de milhões de reais de Ipanema, por exemplo. E essa distorção de tintas está entre as pessoas. Sua pigmentação não diz sobre elas o que verdade alguma poderia contestar. E no Rio a obviedade do preconceito é tão velada quanto são os urubus orixás devorando suas oferendas. Os jornais, as revistas, as histórias do cotidiano contam o que se vende, idéias. A verdade está em todo o restante que não se escreve. E por isso me tornei jornalista. Mas poeta foi antes, porque essa dor, essa utopia já me ganhava desde os primeiros dias de amores infantis na escola. Respirava poesia e ela me possuía de tal forma que a inspiração não era minha, mas do outro. Do ar ao redor. Da saidinha às lojas de departamentos no recreio. Dos ônibus lotados em pleno calor de 40. O caos do Rio me fez poeta antes de jornalista. E se pra toda cena de beleza na orla ou cada espaço de invisibilidade no centro existe um autor, me fiz ator. A pluralidade de indivíduos, e culturas, e situações fazem dessa cidade confusa capital do desajeito. As favelas que se construíram ao redor do dinheiro. A ferrovia que corta na carne a vida de todo trabalhador. Não existe cenário mais diverso e bonito. Toda vez que passo por uma favela vejo o pulsar de seu cerne. A vida que ela respira. Não pelas pessoas, mas sua arquitetura. A favela está viva. Os homens são só microorganismos. Ela cresce e se expande de acordo com a necessidade de sobrevivência e toma espaço. E quando olho pro canto onde tenho meu computador, vejo a favela de cadernos e blocos de escrita com pensamentos tão diversos que não fossem celulose animada por tinta falariam de suas verdades à vizinhança.

Mas enquanto os anticorpos da favela lutam contra os do asfalto, o por do sol do Arpoador permanece. E porque é tão lindo e íntimo, guardo numa das paredes do meu quarto, justamente na oposta à janela, uma pintura. O por do sol para onde já me transportei inúmeras vezes. Ele é tão real e bem vindo que na falta de um através da janela, me contento com ele. Assim. Imaginário mesmo. Assim é o Rio de Janeiro. Imaginário. Por novelas e filmes e publicidade. Nada por aqui é Copacabana a não ser ela mesma. A pobreza não reside no Leblon. Mas o carioca é povo bravio. Na areia da praia somos todos biscoito Globo, mate gelado e futebol.

O Rio de Janeiro não é minha cidade favorita. É meu berço. Onde vivo. Onde nasci. Talvez, como toda criança que cresce eu já tenha conhecido outros lugares e descoberto meus gostos. E como todo filho pródigo retornado a este lugar. Retornado ao meu quarto de onde vejo favelas, desigualdades, violência e insegurança. De onde respiro o amor intenso e a beleza de um por do sol. É aqui que absorvo a energia para viver mais e mais uma vez ser poeta por onde passar.

Tome o Rio como um sorvete. Doce, gelado e molhado. A sensação é maravilhosa por quanto ele não derreter. Ele vai te exigir pressa para aproveitar tudo o que pode oferecer antes de te forçar a lavar as mãos.

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