O dia amanheceu estranho. Chovia, mas o ar era seco, e apesar da
temperatura baixa, o vento estava quente. Um início de dia atípico para uma
típica segunda-feira de trabalho.
Semana passada, o Rio de Janeiro, ou
melhor, diversas capitais do Brasil, passaram por um momento misterioso. Eu
ainda não ouso chama-lo de tomada de consciência, porque até então, nada estava
muito claro.
Duas moedas de dez centavos. Esta era a
jogada inicial. E na mesa de apostas o valor subiu rapidamente para quatro. A
ida e a volta do transporte público ficaram mais caras alguns vinténs. A
matemática é básica. O governo subsidiou por anos o preço da passagem, em algum
momento ela iria aumentar. Mas parece que o fundamental nunca foi o nosso
forte. Faltou arroz, feijão, fubá, ovo, tudo muito fundamental, além de
hospitais e ensino de qualidade. E algo começou a me atormentar. É pouca aposta
pra muita rodada. Então, subiram os valores e mais jogadores se apresentaram à
mesa. Suspense sim, mas nenhum blefe. Era o Rio de Janeiro indo às ruas, mas
protestar por sei lá o quê. "Não é pelo preço das passagens", eles
diziam. Era pelo quê, então? Não soube dizer. E naquele minuto em que escutava
Roberto Carlos dizer-me ao ouvido que "há muito me perdi entre mil
filosofias, virei homem calado e até desconfiado, procuro andar direito e ter os
pés no chão, mas certas coisas sempre me chamam atenção" olhei pela janela
do ônibus, e lá estava escrito numa pilastra "gentileza gera
gentileza."
Qual é nosso estado de coisas? Gosto da
expressão. Ela nos pede resoluta para pensar. E a grande e única revolução
possível é a do pensamento, em cujas armas vorazes - tinta, papel e palavra -
confiamos o protagonismo de nossa história, quando individualmente desistimos
do consumo deliberado e irrefreável, quando destruímos o "sempre foi
assim", ou não repetimos o "eu estou pagando". Onde estávamos
nós na história? O que somos agora?
E lá pelas tantas da tarde, quando os
pensamentos já haviam voado para além do consciente, atravessei a Avenida Rio
Branco esquina com a Avenida Presidente. Era um mar de gente. Muito mais do que
poderia esperar. E gentilmente, havia polícia por lá. Eles riam, diziam
"quero só ver quem é que vai reclamar quando tirarmos os 'cracudos' das
ruas". A pergunta ressoou forte e pesada. Não somos conhecidos pela
empatia social, a zona sul que o diga. Mas as camisas brancas eram
emblemáticas. Pensei, agora sem versos, que metade daqueles jovens eram apenas
entusiastas, menti. Temi quando tremularam bandeiras oportunistas de uma
política que mancha nossa trajetória com um analfabetismo grave, diria Brecht.
E tive sim, alguma esperança, quando compreendi que muitos que ali estavam
"não me representam". Que a pluralidade das reivindicações demonstram
o quanto insatisfeitos estamos. Seja com o calçamento de Copacabana, ou com Tia
Maria da limpeza e seu salário de pobre. Pouco importava. Era o homem, seu lobo
e seu cordeiro.
Por tudo isso não fui às ruas. Senti-me
burro, até insensível. Mas, sobretudo, honesto. Não quis me indispor. Minhas
armas são outras. Eu as empunho agora. Poucos dirão que do meu quarto, nesta
tela de computador é mais fácil. Alguns irão elogiar a disposição das ideias, e
muitos não lerão. O que importa, contudo é que minha voz está aqui, sem
partido, sem mal entendido ou ponto e vírgula. Está nua e molhada, quebrando
barreiras, seguindo viva, renascendo. Foda-se. O que importa é o que escrevo
para o amanhã de muitos, pensado por poucos, quantas vezes preciso for, sem
telegrama, cassetete ou fogo.